Reescrevendo II – Diálogos

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Fonte da imagem: Enterra Solutions

No primeiro texto dos posts sobre reescrita, analisei um trecho de uma história que abandonei há um tempo, encontrando falhas de pontos de vista e verbos de pensamento desnecessários. Espero que tenha ajudado os leitores a melhorar a escrita! 🙂

Nesse segundo texto, vou falar de diálogos e explicar uma boa forma de melhorá-lo. Como exemplo, usarei um que inventei agora, onde João e Ana negociam um contrabando de armas.

– Olá. Finalmente encontrei você – disse João.

– É mesmo – disse Ana. – Demorou, mas conseguimos nos achar. Espero que seus homens não aprontem nada dessa vez.

– Está com o carregamento de armas, Ana? – João franziu o cenho.

– Sim. Está ali em uma daquelas caixas.

– Vou precisar verificar. Lembro que muitas das armas estavam quebradas da última vez.

– Isso não acontecerá novamente. Eu garanto.

O diálogo acima não tem erros bizarros de ortografia, parece bem escrito e segue uma linha lógica de ideias. O que há de errado com ele, então? Vou deixar você perceber. Para isso, faça o seguinte exercício. Primeiro, tente falar em voz alta. Depois, imagine que Ana está falando as frases de João, e ele as dela. O que achou? Se você notou que os dois personagens não tem identidade alguma, parabéns.

Um bom texto consegue dar identidade aos seus personagens, fazendo com que o leitor consiga identificá-los mesmo sem mencionar quem está falando (não que você não deva mencionar). No mundo real, pessoas são diferentes, tem hábitos discrepantes ou curiosos, falam de maneiras singulares. Não é para ser diferente em uma história, com algumas exceções (você vai querer que robôs programados pela mesma empresa falem de forma parecida, por exemplo).

Adicionar floreio aos diálogos é uma tarefa que surge durante a escrita, mas é aperfeiçoada durante a reescrita. Vamos reescrever o diálogo acima de forma que você saiba quem é Ana e quem é João.

– Ah, olá! Finalmente encontrei você, baixinha. – disse João.

– Demorou… – disse Ana. – Nada de gracinhas dessa vez…

– Trouxe o carregamento de bebês de chumbo, pequena? – João franziu o cenho.

– Sim – Ana indicou com a cabeça o grupo de caixas que estava em um canto.

– Vou precisar verificar, menina. Da outra vez comprei armas tão velhas que pensei que fosse tirar um rato de dentro de algumas…

– Não acontecerá.

E aí? Notou alguma diferença? João agora é um cara zombeteiro, sarcástico e nervoso por ter feito um mau negócio no passado. Ana é uma mulher de poucas palavras, que apenas quer ser ver livre de João e/ou terminar logo aquela barganha. Não ficou bem melhor? Isso ajuda a moldar a personalidade dos personagens. Por exemplo, Ana pode ser uma pessoa alegre e feliz, que fala bastante, mas com João, ela age dessa forma. Em uma história maior, isso pode significar muito: ela não gosta de João, ela está triste com algo, ela está nervosa com a situação ou ela pode ser assim com todo mundo. Da mesma forma, João pode estar nervoso e sendo provocativo apenas com Ana; ou não gostar dela; ou ser assim com todos.

Vamos tentar de novo? Que tal colocarmos João como um cara que não sabe falar direito e Ana como uma erudita que gosta de falar com pompa?

– Olá! Achei você, minina – disse João.

– De fato – disse Ana. – Espero que seus rufiões não planejem nada drástico dessa vez.

– Tá com o cargamen… o carregomen… a porcaria das arma? – João franziu o cenho.

– Sim. Estão armazenadas em caixas totalmente protegidas e preparadas para este tipo de mercadoria.

– Vou olhá. As outra tava tudo quebrada.

– Tal problema não ocorrerá novamente. Eu garanto.

Novamente João tem uma identidade própria, assim como Ana. Vale lembrar que não é adequado reproduzir exatamente como as pessoas falam, mas também não se distanciar muito. O problema de escrever diálogos idênticos a fala é que isso cansa o leitor com facilidade, gerando nele uma súbita vontade de jogar seu livro contra a parede. O diálogo falado é repleto de repetições, manias e maneirismos que só atrapalham um diálogo escrito. Vamos tentar fazer isso com o diálogo de João e Ana.

– Oi… Finalmente achei você, hein – disse João.

– É verdade… Hahaha… – disse Ana. – Demorou… é… mas nos achamos. Tipo, se seus homens aprontarem algo dessa vez… hmmm… vai ser ruim…

– Tá com as… é… hmmm… armas? – João franziu o cenho.

– Tô. Tá ali em uma daquelas… daquelas… caixas ali em cima.

– Vou precisar… hmmm… dar uma olhada… Da última vez… hmmm… tinha várias armas quebradas… meio estranhas, sabe? Tipo, não disparavam hmmm… sabe o que to falando?

– Sei sei. Hmmm essas aí tão boas, tipo. Eu olhei, sacou?

O exemplo pode ter parecido um pouco exagerado, mas é apenas para você entender que um personagem pode ter suas manias e seu palavriado, mas isso não pode ser feito de forma exagerada para não exaurir o leitor.

Como exercício, tente reescrever o diálogo do post dando uma identidade para João e Ana. Pode colocar aí nos comentários que eu respondo. 🙂

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4 comentários

  1. – Opa. Finalmente te encontrei. – disse João coçando o braço.

    – Pois é. – concordou Ana. – Demorou, mas conseguimos. Espero que teus homens não aprontem dessa vez.

    – Depende de ti. Está com as armas? – João franziu o cenho.

    – Sim. Estão ali naquelas caixas ali no canto. – apontou para as caixas empilhadas com símbolos estranhos pintados nas laterais

    – Vou dar um olhada antes de fecharmos negócio. Da última vez as armas estavam meia boca e isso quase me custou uns homens.

    – Isso não vai acontecer de novo. Eu garanto. Eu mesma chequei.

    Curtido por 1 pessoa

  2. Oi, Tiago!

    Ficou legal o diálogo. Você adicionou um pouco mais de trama ao mencionar os símbolos e o fato das armas terem custado uns homens.

    Dá pra notar a diferença dos dois principalmente devido à forma como João age (coçando o braço, franzindo o cenho). Podemos inferir que ele está inseguro quanto à negociação. Já Ana soa mais confiante e direta.

    Ficou legal!

    Abraços

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