Reescrevendo I

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Escrever demanda tempo. Reescrever pode demandar o dobro desse tempo. Dificilmente um autor conseguirá ter sucesso com uma história sem poli-la, seja para remover palavras desnecessárias, trocar umas por outras, alterar completamente um personagem, como acontece um arco, recriar um final, planejar um início que fisgue o leitor ou acertar o ritmo da história. Mesmo que você ache chato, reescrever é essencial e você terá que fazê-lo.

Não entrarei em assuntos sobre quando e como reescrever nesse post, mas farei algo diferente do usual. Pegarei trechos de textos antigos meus (não lançados ou já retirados da Internet), de uma época em que eu dominava menos a escrita, e postarei aqui, explicando suas fraquezas, técnicas para melhorá-los e os reescrevendo de outra forma. Numerei o post com “I” porque pretendo publicar outros nesse formato.

Abaixo segue um breve trecho (dois parágrafos) de um projeto de fantasia chamado Cydore, que acabei abandonando.

As ruas de Unicis eram estranhas demais para Gabrielle. Ela não conseguia conceber uma cidade sem portas. Volta e meia ela se assustava com um lunar correndo e se pendurando pelas estacas de madeira no simples ato de entrar em casa. Ela e Baddar caminhavam pelas ruas da cidade em direção à casa de Berriot.

Enquanto andavam, de uma taverna chamada “Espaço Lunar” saíram três lunares com mantas negras e o símbolo do raio em seus peitos. Baddar imaginou que iam provocá-lo, mas não o fizeram, apenas fuzilaram ele com olhares incriminadores. Baddar conhecia a história de alguns grupos radicais que tentavam levar o povo lunar a entrar em guerra contra os humanos. Eles sempre estavam tentando formar exércitos em cavernas e lugares escondidos em Unicis. Quando eram descobertos, costumavam ser punidos, mas acabavam sendo libertados posteriormente.

O que há de errado com o trecho? Em primeiro lugar, há uma clara quebra de ponto de vista. No primeiro parágrafo, eu apresentei o que se passava na mente da personagem Gabrielle. Já no segundo, eu estava na mente do personagem Baddar. Não existe nada de errado com o ponto de vista onisciente (o narrador conhece o pensamento de todos) e muitos livros são escritos dessa forma propositalmente. Mas não era o meu objetivo nesse texto. Eu desconhecia muito além do básico sobre pontos de vista e acabava cometendo esse tipo de erro.

Outro ponto que prejudica o texto é o uso de verbos de pensamento. Se você já está “dentro” da mente do personagem, não precisa de alguns verbos como o “imaginou” usado no segundo parágrafo. Outros verbos de pensamentos famosos são: ver, perceber, entender, acreditar. Uma mudança simples muitas vezes resolve esse problema. Um exemplo não relacionado ao texto seria “Ela percebeu que a chuva era de granizo”. Essa frase pode ser substituída por “A chuva era de granizo”. Já está implícito para o leitor que ela (o ponto de vista atual) percebeu isso. Obviamente, deve-se levar o contexto em consideração. Há situações em que o verbo de pensamento pode ser adequado. Se o ato dela perceber o granizo for crucial para o enredo, talvez seja bom usá-lo.

Voltando ao exemplo dado. Como posso mudar os dois parágrafos para que fiquem mais agradáveis de se ler?

Segue uma versão alterada, considerando o ponto de vista de Baddar:

Era engraçado Gabrielle olhando para todos os lados nas ruas de Unicis. Ela não estava acostumada com sua cultura e devia estar se perguntando onde estavam as portas das construções. Volta e meia ela pulava assustada com um lunar correndo e se pendurando pelas estacas de madeira para subir no telhado e entrar em casa.

No caminho para a casa de Berriot, três lunares escancararam a porta de uma taverna chamada Espaço Lunar. Com mantas negras e o símbolo do raio em seus peitos, Baddar preparou-se para as provocações. No entanto, os três apenas o fuzilaram com olhares e seguiram adiante. Unicis estava cheia de grupos radicais que tentavam levar o povo lunar a guerrear contra os humanos. Sempre tentando formar exércitos em cavernas e lugares escondidos, eram encontrados eventualmente e devidamente punidos, mas acabavam sendo libertados.

Segue mais uma versão, agora no ponto de vista de Gabrielle:

As ruas de Unicis eram estranhas demais. Ela não conseguia conceber uma cidade sem portas. Volta e meia se assustava com um lunar correndo e se pendurando pelas estacas de madeira que flanqueavam as paredes das casas, no simples ato de entrar em casa.

Quando ela e Baddar pegaram o caminho para a casa de Berriot, três lunares com mantas negras e o símbolo do raio em seus peitos escancararam a porta de uma taverna chamada “Espaço Lunar”. Fuzilaram Baddar com o olhar, e ela preparou-se para atacar. No entanto, os lunares seguiram seu caminho. Baddar lhe contara sobre os radicais que tentavam forçar os lunares a entrar em guerra contra os humanos, tentando formar exércitos em cavernas e lugares escondidos da cidade. Quando eram descobertos, eram punidos, mas acabavam sendo soltos.

Notaram as diferenças? No primeiro ponto de vista, Baddar supõe que Gabrielle está curiosa com as casas de sua cidade, achando tal fato engraçado. No segundo caso, quando estamos “dentro” da mente de Gabrielle, vemos que ela considera o lugar estranho e, mais adiante, relembra de algo que Baddar lhe contou. Nesse caso, optei por fazê-la conhecer a história, mas o segundo parágrafo poderia terminar em “(…) seguiram seu caminho.”, já que ela poderia desconhecer a história sobre os radicais. Como não estamos na mente de Baddar, também não a conheceríamos naquele momento do texto.

Fica um exercício para quem quiser fazer: reescreva um trecho de algum texto seu no ponto de vista de um outro personagem que esteja na mesma cena. Veja como muito vai mudar. Esse exercício ajuda a fixar os pontos de vista. Por mais que você queira, vai acabar se acostumando em ficar dentro dos pensamentos de um único personagem.

Espero que tenham gostado dessa experiência de post. Comentem e falem sua opinião. Acharam breve demais? Grande demais? Reescrevam o meu texto à vontade e postem nos comentários. Aceito sugestões de tópicos e melhorias pro blog! Também podem perguntar dúvidas, colar seus textos para que eu dê uma olhada, etc.

5 comentários

  1. Achei maneira essa ideia. Vc devia escrever mais sobre a escrita em si. Aliás, podia fazer um canal no YouTube sobre isso. Acho que a galera vai querer se sentir mais próxima a você, principalmente os seus fãs da Sala do Tempo.

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